segunda-feira, 23 de agosto de 2010

À Cozinha.






A cozinha brasileira é uma verdadeira fusão cultural: diferentes temperos aguçam o sabor, acrescentam cheiros e colorem os mais variados pratos de nossa culinária. Mas isso é somente uma pequena porcentagem da capacidade e utilidade que permeiam o cômodo bem requisitado dentro das casas. A cozinha vira um verdadeiro espaço de convívio, no qual são passados ensinamentos entre as gerações. Saberes populares são transmitidos através de receitas (que podem ou não cair bem para determinado momento), modos de comportamento, segredos de família, saberes...


Quem não aprendeu que a pimenta, por exemplo, esquenta o corpo, que tal folha serve para curar uma simples gripe ou até mesmo doenças mais graves, através de chás e banhos. Quais são as combinações, e o que não se pode misturar?


Quando iniciei no Candomblé uma das primeiras coisas que escutei de meu Babalorixá1 foi que: “Candomblé se faz na cozinha.”. Desde então, procurei estar presente nesse cômodo tão influente no cotidiano do Ilê Axé2 e é exatamente ali que, na maioria das vezes, ocorre o início dos rituais religiosos, onde são preparados os alimentos usados nos fundamentos. E que também se torna um espaço de convívio e aprendizado recíproco. Com o passar do tempo, comecei a reparar que estava reaprendendo o que já havia aprendido (me aperfeiçoando), mas ocorreram sutis diferenças, devido à conotação religiosa. E que há uma afirmativa muito forte da cultura afro-brasileira fazendo-se presente, muito mais que imaginava, na casa das pessoas e influindo no cotidiano individual e coletivo.


Diariamente comemos comidas similares que são preparadas para os Orixás, absorvendo a energia ali existente no alimento. Entendi que determinado prato, cor ou comportamento específicos causam-me mal estar por conta do estranhamento que o Orixá também tem com os mesmos, o que pode ser visto nas mais diferentes pessoas, inclusive as não ligadas à religião.


Se houvesse melhor clareza desse universo da religião de matriz africana, e entre outras tão massacradas pela cultura Grego-romana-judaica-cristã, com certeza haveria maior aceitação e tolerância das pessoas que não seguem essa ou aquela religião. A fobia deve-se ao não conhecimento do assunto – nós amamos somente aquilo que é de nossa esfera intelectual. E essa aversão é derivada da ignorância das pessoas (principalmente formadores de opinião) para determinados segmentos de credo que não têm conhecimento básico, acarretando uma distorção da realidade do cotidiano religioso tratado em questão. Diariamente, vemos acusações de conteúdos duvidosos e sem fundamentos, negando a verdade existente. Mensalmente são agredidos fiéis de diversas religiões não cristãs (principalmente os candomblecistas e umbandistas). Anualmente, são invadidos e violados os templos religiosos – fruto de um comportamento denominado INTOLERÂNCIA RELIGIOSA, o qual é preciso extinguir para que possamos viver em uma sociedade mais plural e de respeito às diferenças, seja ela de cunho religioso, sexual, gênero, étnico/racial, estético, entre outros. Um Estado, de fato, laico3, sem a interferência de qualquer segmento religioso seria um bom começo.


Enfim, quando for visitar a sua cozinha lembre-se que ali esta plantada uma gama cultural, e que é a mesma cultura discriminada por certos segmentos que não tem a hombridade de aceitar a diversidade. Negando-a, e tentando abafar a todo custo o que há anos vêm mantendo-se vivo!


























1 Babalaxé – Palavra que vem do idioma yorubá usado nas casas de Candomblé, refere-se a um título que é dado ao ocupante do mais alto posto hierárquico da casa, também conhecido com Babalorixá, ou no popular Pai-de-Santo. Se for um mulher, será Iyalaxé, Iyalorixá ou Mãe-de-Santo.


2 Ilê Axé – Literalmente Casa de Axé. Local onde são cultuados os Orixás. Conhecido também como barracão, terreiro, centros, entre outros.


3 Quando menciono Estado laico, quero com isso fomentar a importância da nivelação da religião nas questões cívicas, que todas estejam no mesmo patamar. Não a negação, a extinção, ou a inviabilidade das religiões.

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